Entrevista com o Escritor Richard Zimler


Zimler: «Custou escrever ´Os Anagramas de Varsóvia´»
Texto: Pedro Justino Alves

«Os Anagramas de Varsóvia», de Richard Zimler, editado pela Oceanos, é a última obra do autor, lançado em Setembro de 2009. O norte-americano que veio para Portugal em 1980 e vive no Porto desde 1990, confessa que este foi um dos livros mais difíceis de escrever da sua carreira preenchida de êxitos. Tudo porque perdeu familiares no gueto de Varsóvia, local onde decorre a obra.
O Holocausto sempre foi uma pedra no sapato na vida de Richard Zimler, que confessa que sempre sentiu necessidade de pesquisar sobre o assunto. Numa altura em que o Mundo assinala os 70 anos do início da II Guerra Mundial, o norte-americano decidiu enfrentar os seus fantasmas com «Os Anagramas de Varsóvia», uma obra que demonstra na perfeição o que foi viver nos guetos polacos durante o conflito bélico.

Um drama que nem sequer o autor conseguiu ficar indiferente, confessando que o «humor negro e o heroísmo» das duas personagens principais foram fundamentais para a conclusão da obra. «Foram essenciais para ultrapassar os períodos mais complicados durante a escrita», admite. Para contar a história, Zimler refugiou-se no género policial devido a «atmosfera sombria e tensa do gueto», que possuía «todos os elementos de um thriller comovente e arrepiante sem eu ter que inventar alguma circunstâncias».


Evidentemente que este livro significa muito para você em termos pessoais, já que, se não estou em erro, perdeu familiares no gueto de Varsóvia. Este foi o livro mais complicado de escrever da sua carreira?
É verdade, todo o lado europeu da minha família morreu nos campos de concentração, excepto um dos filhos de uma irmã da minha avó materna. Talvez por isso sempre senti a obrigação de pesquisar sobre o Holocausto. Um aspecto do período nazi sobre o qual sabia pouco antes de começar a escrever «Os Anagramas de Varsóvia» era os guetos na Polónia, onde os judeus foram colocados antes de transportados para os campos de concentração. Li muito sobre o assunto para saber como era a vida quotidiana. E só depois comecei a escrever. Quando escrevo, mantenho uma certa distância da acção do livro, algo essencial porque um romancista não se pode deixar sobrecarregar de emoção durante o processo de criação. Fiquei transtornado apenas três ou quatro vezes – por exemplo, quando o narrador, Erik, descreve o corpo esquelético de uma senhora que morreu de fome. O humor negro e o heroísmo que Erik evidencia ao longo do livro, e também o amigo Izzy, foram essenciais para ultrapassar os períodos mais complicados durante a escrita.

Mais uma vez a descrição dos ambientes é muito rico, como é aliás habitual nas suas obras. Como foi o trabalho de pesquisa?
Li vários livros sobre os guetos de Varsóvia, Lodz e outras cidades polacas para ter uma ideia clara da vida quotidiana dos judeus. O livro mais importante do meu ponto de vista - e que recomendaria vivamente – é um de Emmanuel Ringelblum, «Crónicas do Gueto de Varsóvia». Ringelblum era um historiador e escritor e, juntamente com outros voluntários, formou um grupo que escreveu apontamentos pormenorizados sobre todos os aspectos da vida no gueto, acumulando cerca de 50.000 documentos. Por exemplo, jornais ilegais, trabalhos escolares, posters, bilhetes de teatro.... Quando Ringelblum e o seu grupo souberam que provavelmente não iriam sobreviver, colocaram os textos e os documentos em latas de leite e caixas metálicas, enterrando as mesmas em caves. No fim da guerra, a maioria das latas e caixas foram descobertas. Este arquivo oferece-nos uma riquíssima fonte de informações sobre todos os aspectos sociais e políticos do gueto. Em relação ao processo de pesquisa, creio que durou cerca de seis meses. Durante este período fui a Varsóvia, embora 99% do gueto já não exista, já que foi destruído primeiro pelos alemães durante a revolta judaica de 1943 e, depois, pelos russos no fim da guerra. Mesmo assim, foi importante – e comovente – estar em Varsóvia, a cidade dos meus avós paternos, passear nas ruas em que eles passeavam há 70 anos.

E teve alguma coisa que o surpreendeu em concreto durante a pesquisa?
Surpreenderam-me principalmente as diferenças entre os guetos. Além da falta de comida e de medicamentos, cada gueto tinha as suas próprias características. Por exemplo, no gueto de Lodz, os centenas de milhares de internados não tinham acesso à moedas e notas polacas ou alemães, mas foram forçadas pelos nazis a usar dinheiro impresso apenas para o gueto. Pode não parecer uma medida importante, mas limitou quase por completo o desenvolvimento de um mercado negro porque os judeus não podiam pagar pela comida ou roupa ou qualquer outro produto fora do gueto. Uma consequência dessa medida foi que os judeus de Lodz foram quase totalmente dependente dos nazis – uma situação absolutamente abominável. A crueldade e a miséria do gueto de Lodz marcaram para sempre os poucos que conseguiram sobreviver. Em Varsóvia, os nazis permitiram aos judeus a utilização do dinheiro polaco e consequentemente um mercado negro floresceu. Isto foi uma enorme ajuda para os residentes porque podiam sair clandestinamente do gueto e comprar produtos nas zonas polacas da cidade.

O que diferencia «Os Anagramas de Varsóvia» do restante das suas obras?
«Os Anagramas de Varsóvia» tem o ritmo de um policial, é um livro mais rápido do que, por exemplo, «A Sétima Porta», o meu anterior romance. Esta rapidez deu-me a possibilidade de criar um romance mais acessível e também obrigou a focar a escrita quase exclusivamente em Erik, o narrador, e no seu amigo de infância, Izzy. Não foi uma desvantagem porque adoro ambos. Para mim, são duas pessoas magníficas.

«Os Anagramas de Varsóvia» é uma história de vingança e ressentimento ou há outros valores também expostos?
Em parte, é a vingança de Erik sobre as pessoas que mataram os seus familiares. Mas, para mim, é muito mais do que isso porque o livro explora como conseguimos encontrar forças e vontade para continuar depois de perder quase tudo. Como é que reconstruímos a nossa identidade depois de um trauma insuportável? Como é que conseguimos encontrar um novo significado para a vida? Através de Erik e de Izzy exploro estas questões e temas e, em consequência, exploro também a resistência e a coragem do ser humano. Para mim, é um livro sobre o heroísmo. Não é o heroísmo de um soldado com uma arma ou do protagonista de um filme de Steven Spielberg ou George Lucas. É o heroísmo quase silencioso de todos que lutam na sua vida quotidiana para encontrar a justiça e manter a sua dignidade.

Porque resolveu escolher o género policial para descrever o drama no gueto de Varsóvia?
Ao descobrir durante a minha pesquisa a atmosfera sombria e tensa do gueto – um sítio de carências terríveis mas também com um mercado negro muito dinâmico – decidi que era o sítio ideal para um policial noir. O gueto tinha todos os elementos de um thriller comovente e arrepiante sem eu ter que inventar alguma circunstâncias.

Como vê a criação do gueto de Varsóvia? É a loucura humana no seu expoente máximo? Foi uma das criações mais demoníacas do ser humano?
Os nazis precisavam de uma maneira muito eficiente de vigiar e controlar a população judaica e, de acordo com a tradição europeia milenar, optaram por colocar os judeus numa área limitada. A criação dos guetos na Polónia e outros países foi uma consequência lógica da ideia completamente ilógica de higiene racial, da necessidade de proteger a população cristã de uma raça inferior e contaminante. A loucura surge da ideia nazi de ser uma raça pura e da ideia subjacente das raças puras serem mais fortes. Não há raças puras! Somos todos mestiços. E sabemos através das leis genéticas que, em geral, quanto mais mistura tivermos mais resistente seremos.

Em determinado momento o gueto de Varsóvia transforma-se numa ilha. Pelo menos é essa a sensação que temos quando lemos o livro, que os judeus viviam numa ilha localizada precisamente no centro da Europa.
Sim, desenvolvi a imagem da ilha ao começar a fazer a minha pesquisa, de uma ilha delineada por um muro alto de tijolo e arame farpado em vez do mar. Fascinava-me essa imagem, de um pequeno território cortado do resto da Europa e do Mundo. Como é que as pessoas viviam? O que comiam? Havia escolas para as crianças? Surgiram imensas perguntas e li muito para conseguir respostas adequadas a todas elas. E depois comecei a escrever...

Um dos méritos do livro é demonstrar que também no horror há uma vida normal, a vida de todos os dias. Essa realidade é propícia do ser humano, a realidade da sobrevivência?
Penso que o ser humano é muito flexível e consegue adaptar-se a um leque enorme de circunstâncias. Os prisioneiros dos guetos tinham poucas opções: ou se adaptavam a nova condição ou tentavam fugir. E a fuga era uma opção muito arriscada. Os que tentaram foram frequentemente denunciados por cristãos e acabaram executados. No início, em Outubro de 1940, a grande maioria dos judeus nunca imaginou que iria ser transportada mais tarde para campos de morte. Por isso, optaram por ficar no gueto e construir uma nova vida. Conseguiram criar escolas para as crianças e uma vida cultural muito rica – teatros, produções musicais, dança... Fizeram de tudo por manter uma vida normal, pelo menos tentaram. Mais tarde, depois que os transportes começaram, depois de compreenderem que iriam ser mortos, os judeus montaram a famosa revolta do gueto de Varsóvia, um dos mais comoventes exemplos de coragem e heroísmo que conheço.

Demonstra também em muitos momentos o pior do ser humano, já que, mesmo enfiados no gueto, alguns judeus procuraram ter vantagens sobre os outros.
Uma situação limite de imenso sofrimento e degradação pode fazer nascer o melhor ou o pior dentro das pessoas. E não sabemos prever qual dos dois – ou qual a mistura dos dois – vai emergir num determinado indivíduo. É um grande e importante mistério psicológico. Quando se trata da sobrevivência dos nossos filhos e dos nossos pais não podemos prever o que faremos. E talvez seja demasiado fácil julgá-los com 70 anos de distância.

Acredita que ainda há guetos de Varsóvia espalhados pelo Mundo?
Sim, infelizmente não aprendemos muito com a história e há muita gente marginalizada em guetos no nosso mundo, vivendo em condições miseráveis e sem muita esperança de uma vida melhor.

In Diário Digital, 7/10/2009

Comentários

ematejoca disse…
Nunca li nada deste autor, mas como vive no Porto já o vi várias vezes na rua e no café.

Todo o material que recebo, Fátima, e de que gosto, uso sem perca de tempo nos meus blogues.
Espero, que não se importe.

É um tema de dissertação, não acha? E o seu texto um bom começo.
Fátima André disse…
Bom dia, Teresa :)

Pode usar todo o material que considere pertinente. É obvio que não me importo, pelo contrário, fico grata pela divulgação.

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