A (auto)avaliação das escolas: “virtudes” e “efeitos colaterais”


Um artigo que vale a pena ler.


Da Conclusão

A instituição de sistemas de avaliação das escolas, em diferentes geografias sóciopolíticas, surge habitualmente associada à preocupação em promover a qualidade dos respectivos sistemas educativos.34 Contudo, a qualidade, dada a sua “dispersão semântica”, pode ser invocada ao serviço de agendas e agentes muito diversos. De resto, frequentemente, a qualidade desdobra-se em valores que, apesar da sua forte consensualidade e aparente convergência, raramente podem ser satisfeitos em simultâneo. Assim, por exemplo, como advertem Sergionvanni e outros (1987, p. 7), citados por Natércio Afonso (2002, p. 53), valores como equidade, excelência, eficiência e liberdade, podendo ser tomados como as quatro faces de um sistema de qualidade, convivem, contudo, “num constante estado de tensão, de tal modo que uma excessiva ênfase num deles prejudica a expressão de cada um dos outros três.” Também aqui se afirma a natureza política da avaliação: a prevalência de uma das faces sobre as outras depende, em última instância, do (des)equilíbrio) de poderes dos agentes e das agendas em presença.

Paralelamente, em Portugal raramente se tem equacionado a avaliação da escola enquanto “organização educativa complexa” (AFONSO, A. J., 2003), privilegiando-se antes formas pobres e “preguiçosas” de avaliação (AZEVEDO, 2007), com destaque para a produção e divulgação dos muito propagandeados rankings das escolas, sub-produto da média aritmética dos resultados dos exames do 12º ano. Os efeitos de “beatificação” das escolas melhor posicionadas (e consequente branqueamento de alguns dos processos que as catapultaram a essa posição) e de “demonização” das relegadas para o fim da tabela (e consequente apagamento dos esforços e implicação dos que aí trabalham) são hoje já relativamente bem conhecidos.

Uma visão acrítica e ingénua, ainda que bem intencionada, dos processos de avaliação das escolas leva com frequência a um registo normativo e laudatório que põe em destaque as “virtudes” e as potenciais “melhorias” associadas àqueles processos. Contudo, importa acautelar que certas formas de avaliação, sobretudo aquelas que desprezam (ou ignoram) o estatuto da escola como “organização educativa complexa”, comportam também “efeitos colaterais” que podem não ser despiciendos e induzir mesmo formas de “democratização segregativa” (MERLE, 2002). Estes riscos surgem fortemente potenciados em contextos de pressões performativas e quando se indexa, como no caso português, aos resultados da avaliação um conjunto de “prémios e castigos”. Nestas circunstâncias, como assinala Ball (2002, p. 16): “as fabricações organizacionais são uma fuga ao olhar atento e directo, uma estratégia de gestão da impressão que, de facto, cria uma fachada calculada”35.
Neste contexto, o professor tenderá cada vez menos a trabalhar com as crianças, para a passar a trabalhar as crianças para que estas brilhem nos testes. As escolas, naturalmente, envolver-se-ão cada vez menos nos absorventes e exigentes processos de promoção do sucesso educativo, para se dedicarem a vistosas encenações de fabricação dos resultados. Aqui, mais importante do que a autenticidade, parece ser a plasticidade, ou seja, a capacidade de ajustamento às demandas do momento, o que implica, desde logo, “reformar” o próprio professor. É que, como alerta Ball (2002, p. 3): “A reforma não muda apenas o que nós fazemos, muda também quem somos”.
Apesar das dificuldades e limites que a assunção da escola como “organização educativa complexa” coloca aos processos avaliativos, e muito particularmente à avaliação do “factor escola”, como oportunamente adverte Azevedo (2007, p. 69), essas condicionantes impõem prudência, mas não justificam a desistência. O que se impõe é a superação da visão simplista e redutora de um processo que é, antes de mais, político (DIAS SOBRINHO, 2000), ou seja, envolve uma grande pluralidade (e conflitualidade) de interesses, valores, perspectivas, objectivos. Reconhecer o amplo “arco semântico do conceito de avaliação” (SANTOS GUERRA, 2002, p. 272), concebê-la como uma prática instituinte que corporiza uma construção colectiva que se actualiza em cada escola enquanto “arena política”, constituem dois “requisitos” básicos para resgatar a avaliação institucional das derivas gerencialistas e (re)colocá-la ao serviço de uma agenda que persegue a “qualidade democrática” da escola (AFONSO, A. J., 2003).

Notas:
34 No caso do sistema educativo português, o normativo que aprova o sistema de avaliação da educação e do ensino não superior, inclui nos seus objetivos “Promover a qualidade do sistema educativo, da sua organização e dos seus níveis de eficiência, apoiar a formulação e o desenvolvimento de políticas de educação e formação e assegurar a disponibilidade de informação de gestão daquele sistema “(Lei nº 31/2002, de 20 de Dezembro, alínea a) do artº 3º ).
35 Acrescenta o mesmo autor (BALL, 2002, p. 19) que: “As tecnologias políticas do mercado, gestão e performatividade não deixam espaço para um ser ético autônomo ou coletivo. Estas tecnologias políticas têm potencialmente profundas consequências para a natureza do ensinar e do aprender.”

Texto Integral


In SA, Virgínio. A (auto)avaliação das escolas: "virtudes" e "efeitos colaterais". Ensaio: aval.pol.públ.Educ. [online]. 2009, vol.17, n.62, pp. 87-108. ISSN 0104-4036.

Comentários

BC disse…
Com Outono ou sem Outono, o dia hoje está maravilhoso (em termos climáticos).
Não estou a vir muitas vezes aos blogs, estou a deixar lentamente, é pena, mas nada é como no princípio toda a gente se está a afastar.
A vida é complexa e as pessoas acabam por ter outras coisas para fazer, e o s blogas e tudo isto ficará inevitavelmente para trás.
Beijo e :)

Mensagens populares deste blogue