Reflectir sobre o uso da escrita e da linguagem


A sustentar o argumento do posicionamento de Mia Couto acerca da unificação ortográfica (post infra), deixo uma proposta de leitura que me parece dar algumas respostas que reflectem o mal-estar de outros grandes autores "perante a perda do sentido da experiência, chamando a si a responsabilidade do uso da escrita e da linguagem como um compromisso perante a vida, recusando a literatura enquanto forma de entretenimento." (In Crítica)



O Acento Agudo do Presente, de António Guerreiro
Edições Cotovia, 2000, 176 pp.




Recensão Crítica
Por Maria João Cantinho


É de saudar a excelente colecção Ensaio, que nos vai brindando com belíssimos ensaios estéticos e literários, perfilhando autores como João Barrento, Giorgio Agamben, Roberto Calasso e Paul de Man. Agora chegou a vez de António Guerreiro, que publica a sua primeira obra ensaística, reunindo na mesma uma série de artigos, anteriormente publicados em diversas revistas literárias e catálogos, havendo apenas um artigo que ainda não tinha sido publicado. Já conhecido do leitor português, o autor não é propriamente um estreante, publicando regularmente as suas recensões no semanário Expresso.

Composto por cinco artigos, "A Ocupação mais inocente", "Celan ou o Testemunho Impossível", "A Época e as suas Fantasmagorias", "História e Apocalipse", "A Força da Gravidade" e "O Sublime ou o Destino da Arte", esta obra, cujo título exige a sua explicação, reflecte sobre autores como Celan, Walter Benjamin, Musil, Herman Broch, Hofmannsthal, Kafka, Joyce, Alfred Döblin e outros. Todos estes autores padecem de uma mesma enfermidade, o mal-estar perante a perda do sentido da experiência, chamando a si a responsabilidade do uso da escrita e da linguagem como um compromisso perante a vida, recusando a literatura enquanto forma de entretenimento. Por isso, desde logo, o primeiro artigo constitui-se como uma abertura ou uma introdução para o que se segue, abordando de forma mais generalizada, os "casos" da literatura como as faces diversas de um mesmo rosto, apontando sempre para uma mesma questão essencial: a desagregação da sociedade burguesa e dos seus valores, arrastando nessa derrocada a perda do sentido da linguagem e do seu valor e a emergência de uma nova ordem, a da modernidade, em que a linguagem nos aparece unicamente sob o seu uso instrumental.

Em "A Ocupação mais inocente", formula António Guerreiro as questões essenciais que são diagnosticadas pelos vários autores, relativamente a esse mal-estar. A responsabilidade do escritor perante o incontornável "mal dos valores" (para utilizar a célebre expressão de Hermann Broch) converte-se, desde logo, no centro, a partir do qual se ramificam os restantes artigos. O título deste artigo nasce de uma célebre carta que Hölderlin dirige à sua mãe, descrevendo a poesia como "a ocupação mais inocente de todas", mas nós também sabemos que é a poesia, e em especial a tradução da poesia grega, que o levará à insanidade mental. E é essa ironia e esse paradoxo que se constituem como o alimento matricial deste conjunto. Se, por um lado, a literatura é uma ocupação inocente, lavrada na solidão humana, por outro, muitas vezes, parece ser uma forma de "agir" e intervir eficazmente na sociedade. Insolúvel, esse paradoxo terá as mais nefastas consequências em diversos escritores, consubstanciando aquilo a que Herman Broch chamou, na sua obra fundamental Criação Literária e Conhecimento, a responsabilidade e o compromisso do escritor, enquanto arauto do espírito do seu tempo.

O segundo ensaio, "Paul Celan e o testemunho impossível", é o mais longo, mas é também, na minha opinião, o mais conseguido e o mais contundente. Assumir a poesia numa época em que a opinião judaica bem-pensante (Adorno e o seu séquito, evidentemente) a declara como impossibilidade, é um pecadilho grave, condenando a obra de Celan a uma "terra de ninguém", estado com o qual o poeta não conviveu nada pacificamente. A polémica que envolve o tão famoso poema "fuga da morte" parece ilustrar em toda a intensidade a condenação do mundo perante a poesia de Celan. Por isso, a responsabilidade da poesia atinge nele uma dimensão trágica, conduzindo-o a um emudecimento inevitável, apesar do desejo de "continuar a falar", numa linguagem da "atenção" , perante o outro e perante o mundo. E essa responsabilidade subtrai o poema à sua intemporalidade, incrustando nele uma actualidade a que não pode furtar-se, como uma "cicatriz do tempo". Deste paradoxo nasce o título da obra de António Guerreiro, apontando para a impossibilidade da literatura no seu carácter intemporal e descomprometido. António Guerreiro parece, assim, recusar, à partida, a ideia de uma literatura que se reduz à dimensão da cultura massificada e inócua, puramente ornamental, citando uma célebre frase de Agamben:

Uma stimmung de massa já não é uma música que possa ser registada: é apenas ruído.

Esse fio condutor guiá-lo-á ao longo de todos os artigos que constituem esta obra e, por essa razão, a escolha dos autores não é casual, mas pensada como um encadeamento natural da sua tese. Os artigos que se seguem, sobre Walter Benjamin, "A Época e as suas Fantasmagorias" e "História e Apocalipse" reflectem bem a visão comprometida de Benjamin com a sua época e com a história. Se, no primeiro artigo, António Guerreiro procura reflectir sobre a "imagem dialéctica", tomando-a como conceito operatório fundamental de Benjamin e esclarecendo o modo como nela é pensada a articulação entre passado e actualidade, estabelecendo, assim, a partir dela os parâmetros da sua crítica ao positivismo e à ideia de progresso, no segundo, o autor preocupa-se essencialmente em determinar em que consiste a visão da história do ponto de vista benjaminiano, numa contraposição entre a linearidade temporal e a "explosão" causada pela intervenção do tempo cheio e messiânico, numa história entendida como catástrofe, à luz dos seus escritos finais, reunidos sob o título Teses sobre o Conceito de História.

A familiaridade dos autores, entre si, e dos temas obedece a uma ordem, que se prolongará pelos artigos que se seguem. Em "A Força da Gravidade" apresenta-nos o autor uma breve introdução ao pensamento de um filósofo que sempre se manteve nas margens do pensamento académico, tendo escrito unicamente uma obra de vulto, pois suicidou-se apenas com 23 anos de idade. Trata-se de Carlo Michelstaedter e escreveu um tratado com o nome La Persuasione e la Rettorica, o qual se transformará, em virtude das circunstâncias envolventes, na "tesi di laurea" mais famosa da universidade italiana. O autor não cai na facilidade da análise, procurando ultrapassar o carácter cultural dessa obra e clarificar as suas obscuridades, suscitadas pelos conceitos de persuasão e retórica formulados pelo jovem filósofo, bem como determinar as suas consequências para o pensamento filosófico da época.

Finalmente no último artigo, "O Sublime ou o Destino da Arte", procura António Guerreiro analisar as dificuldades suscitadas pela cisão kantiana entre o Belo e o Sublime, no panorama do pensamento contemporâneo. Como este artigo foi redigido para o catálogo de uma exposição, A.G. dirige-se a um público específico, tomando casos do pensamento estético actual, como, por exemplo, as reflexões de J. Lyotard e Jean-Luc Nancy, bem como a obra pictórica de Barnett Newman, para analisar as consequências dessa cisão.

Do ponto de vista da análise filosófica, a obra de A. Guerreiro apresenta-se menos desenvolvida e mais vaga, tornando-se, por isso, mais frágil. Daí que o seu interesse, do meu ponto de vista, seja sobretudo do ponto de vista da análise literária. E segundo essa ordem de ideias, o que A. Guerreiro faz é muito bem feito, merecendo mesmo um lugar de destaque. Por essa razão, caro leitor (e, se me leu até aqui, dou-lhe os meus parabéns), acho que este livro não deve passar despercebido aos olhos dos fiéis amantes da Literatura.

In Crítica

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