"O poder dos livros"

É o título de uma entrevista com Daniel Pennac à Label France em 2000. Um agradecimento à HD (pedagoga), colega e amiga destas e de outras danças, que me enviou esta entrevista em 2006. [Obrigada por me transmitires o lado bonito da Pedagogia.] Li, gostei e guardei “religiosamente”. Reencontrei-a hoje. Reli o seu conteúdo. Tão actual. Vou partilhá-la com os meus leitores. É extensa, mas vale a pena ler. Acho que o leitor vai gostar. Espero que goste! (palavras que um dia o escritor Richard Zimler me dirigiu em dedicatória num dos seus livros). Falarei dele aqui noutra viagem pelos livros.


Entrevista com Daniel Pennac
Label France - Abril de 2000, n.º39


Romancista, professor de francês e leitor apaixonado, autor de sucesso de uma saga policial com personagens tão singulares quanto simpáticos - a já mítica família Malaussène - Daniel Pennac é um dos autores franceses mais traduzidos e lidos no mundo. Através de Label France, ele nos fala de sua experiência como professor, de seu amor pelos livros e alunos e de sua relação com a ficção e o imaginário.


Label France: Como o senhor se define?

Daniel Pennac: Se, ao me entrevistar, você imagina estar entrevistando um intelectual, está muito enganada, eu sou um romancista. Ou seja quase o contrário de um intelectual. A primeira obrigação do romancista é, de fato, abandonar os conceitos e fazer com que qualquer idéia possa ser encarnada. Se você pode resumir um romance pela idéia que o fez nascer, ele é um romance fracassado. É um ensaio dissimulado em romance, o que é uma especialidade francesa. Céline, que não perdia a oportunidade de uma provocação, disse assim mesmo uma coisa muito justa: "Em matéria de romance, nada é mais vulgar do que uma idéia." Eu me definiria portanto como um contador de histórias metaforizador.

Como o senhor vê o futuro?

Quando Benjamin Malaussène declara a sua Julie: "Julie, vou sempre amar você", ela responde com uma certa sabedoria: "Contente-se de me amar todos os dias". É assim que vejo o futuro: a consciência apaixonada por um cotidiano que se abre para o amanhã. O futuro "em si" não tem sentido.

O que o senhor pensa do futuro da escrita, do livro, na era das novas tecnologias da comunicação?

O computador teria vencido a resistência de Gutenberg? Não, eu não acho que o livro, e de uma maneira mais geral a escrita, ou seja essa viagem intersideral que fizemos para passar do sinal para o sentido no momento em que aprendemos a ler, esteja ameaçado por outras formas de expressão. Acho que a escrita tem um grande poder. Tenho a fraqueza de pensar que a descoberta de uma palavra como "mamãe", ou seja a passagem intelectual de uma sucessão dos sinais mais arbitrários para a significação mais íntima, cria um choque do qual nunca nos recuperamos, e que esse choque nos liga definitivamente à escrita.


"A escrita cria um choque do qual nunca nos recuperamos"


As novas tecnologias, a Internet, etc? Não é a primeira vez que a escrita é desvirtuada por práticas minimalistas ou utilitaristas. Mas, afinal de contas, a escrita é desvirtuada até mesmo por um mau romance. Em suma, a escrita e o livro sempre tiveram na França um lugar à parte. Nossa cultura do romance é tão importante para nós quanto a nossa cultura alimentar.

Em sua obra sobre a leitura Como um Romance, o senhor promulga os dez direitos imprescindíveis do leitor, um dos quais é não ler, como meio de reconciliar alguns jovens com os livros?

Regra número um: não envergonhar os iletrados. Durante toda a minha vida trabalhei em ritmo de urgência nessa área. Tive contato constantemente com crianças que estavam não apenas aborrecidas com a escrita, mas também socialmente ameaçadas. A leitura, além disso, é para elas algumas vezes ameaçada pela maneira como a escola a apresenta, que é puramente "médico-legal" e que funciona muito bem com "os que sabem ler", mas não com as crianças em dificuldade escolar.
É urgente portanto reconciliar essas crianças com a leitura. Eu, pessoalmente, faço isso nas aulas, lendo em voz alta, falando-lhes de literatura, "contando-lhes histórias". Como um Romance tinha a função de apresentar a minha prática nessa área, sem a pretensão de transformá-la em "método".
O problema das crianças que vivem nos inumeráveis círculos da periferia não é mais o fato de serem iletrados, nem é o de perderem o gosto pela leitura, mas o fato de nem mesmo dominarem mais a linguagem oral, por não terem a quem falar. A oralidade é a primeira coisa que se perde na periferia, onde os garotos são “encerrados” em blocos, onde organizam-se necessariamente em bandos, onde a linguagem está reduzida a códigos de reconhecimento próprios ao bando, portanto a sua mais simples expressão. O único lugar aonde os jovens podem ir é o supermercado, e no final do supermercado está o caixa, que só fala de números.

A escola preenche então o seu papel de promover uma abertura?

Antes de mais nada, ela é obrigada a fazer o papel de promotora da reinserção social. O professor que chega até essas crianças deve, antes de ensinar-lhes a ler e escrever, ensinar-lhes primeiro a se comportar, em segundo lugar a falar, ou seja a se comunicar, a levar em conta a presença de um interlocutor... Esse já é, por si só, um trabalho enorme que precede a simples transmissão de um saber.

A seu ver, o que seria necessário modificar em matéria de pedagogia e educação?

Não tenho uma posição teórica sobre essas questões, porque estou bem situado para saber que, seja qual for a opinião que tenhamos, existe sempre um momento, no dia 6 ou 7 de setembro, no reinício do ano escolar, em que nos vemos sós diante de 35 indivíduos que vão constituir uma entidade realmente particular, diferente da classe ao lado e de todas as que tivemos antes. E dentro dessa entidade existem 35 individualidades que eu preciso obrigatoriamente levar em consideração individualmente, se quiser fazê-las progredir seja em que área for.
A ginástica intelectual do professor consiste em criar uma dinâmica no interior desse grupo sem jamais negar qualquer das individualidades que a compõem; o que não faz parte do que se ensina aos professores, mas é a realidade cotidiana de seu trabalho. Porque, se eu nego um aluno como indivíduo, ou se, ao contrário, dou atenção demais a ele, o ambiente da turma irá se desestabilizar.
O professor deve portanto "administrar", como se diz hoje, e de maneira instintiva, esse tipo de problema que não é, para falar a verdade, problema de ordem pedagógica, mas comportamental e afetivo. Se essas dimensões não forem levadas em consideração, se não nos ocuparmos dos "bons" alunos, a pedagogia vai se tornar uma espécie de mecânica cega que alcança apenas 10% das crianças escolarizadas. Nós, professores, deveríamos poder dar provas de atenção real, de paciência, e também de uma certa gratuidade em nossas relações com os alunos. Talvez seja isso que eles chamam de "respeito".

Mas a transmissão dos conhecimentos na escola é cada vez menos desinteressada.

É verdade. Nós, professores, temos tendência, para nosso próprio conforto metodológico e para atingir os objetivos "rentáveis" que nos são determinados, a nos comportar como usurários: é preciso que haja rendimento, e o mais rápido possível! Eu lhe ensino uma lição hoje à tarde e você tem que recitá-la amanhã. Isto, evidentemente, é necessário para criar nas crianças o hábito da regularidade no trabalho, mas é perfeitamente insuficiente para me dar a garantia de que essa lição será assimilada e que restará alguma coisa dela em dez anos.
Da mesma forma, para fabricar verdadeiros leitores é preciso de vez em quando recorrer à informalidade. Por exemplo: na minha turma de 1º ano do 2º Grau, das seis horas de francês por semana, eu reservava sistematicamente duas horas para falar da literatura por ela mesma, para ler romances com o entusiasmo de leitor. Fora do programa e sem qualquer exigência de restituição. De tanto ler, de relatar romances, de propor livros aos alunos e fazê-los circular na classe, no final do ano os 35 alunos tinham necessariamente encontrado um romance, um autor e, conseqüentemente, outros romances do mesmo autor, outros autores da mesma família literária, etc.
Se raciocinarmos em termos objetivos, como professor de letras meu objetivo é duplo: preparar os alunos para o baccalauréat (N.T.: espécie de exame vestibular) e, se conseguir me organizar, dedicar meu tempo a fabricar leitores a longo prazo. Esperando, com isso, fabricar ao mesmo tempo homens e mulheres dignos de uma boa conversa e que saibam aproveitar para pensar um pouco por eles mesmos. Mas esse ensino só pode passar através do exemplo e da valorização de uma certa gratuidade.

[…] (leitura integral aqui)

Entrevista concedida a Anne Rapin

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